Diário de uma queda
Sentada na cadeira e com as pernas em cima da cama me vi toda torta lendo um livro. O sol entra para janela sem me tocar direito, mas ilumina o suficiente. Suada olho para as pernas cheia de pelos, não faria sentido algum depilar agora. Não tiraria só os pelos, mas também os cascões. Estou toda marcada.
Olho os arranhões de uma queda idiota de bicicleta se misturar com diversas picadas de mosquito. Elas demoram de sair. Já fazem mais de 15 dias e minha perna segue cheia de rasuras e sem a maciez que gosto de exibir e pedir que toquem.
Lembro dessa queda. Adolescente, assim que me senti. Mesmo aos 26 me esbarro, me bato e ganhos roxos o tempo inteiro, mas cair pareceu demais. Nem sequer eu ando de bike. Naquele dia fiz o exercício de dizer sim para tudo. Queria retomar uma coragem que perdi desde quando o confinamento começou. Eu nunca fui mulher de ter muitos medos, fui criada a base de empurrões e avalanches que me tornaram impetuosa e mesmo tremendo, eu mergulhava em ondas gigantes.
Estava me sentindo atrofiada desde que tudo começou, parecia que as coisas não poderiam se mexer, que meus dedos que antes tanto diziam estavam duros, tesos e sem a capacidade de traduzir minha mente que antes era ágil mas, se encontrava letárgica. Parecia que minhas pernas eram incapazes de andar por todos os becos e vielas que sempre andei. Parecia que eu não sabia respirar, que era pesado e denso colocar ar nos pulmões.
Até que ouvi um sorriso: vamos de bike? catei uma pequena, uma que meus pés ainda conseguissem tocar no chão. Disse que sim. Meus ombros estavam quase colados nas orelhas. Fui aos poucos parando de andar em zigue-zague e fui estabilizando em duas rodas. Olhava para os lados e outras bikes eram muito mais rápidas, mas eu estava bem com minhas pernas mexendo devagar. Meu sexo vibrou um pouco, não estava acostumado a sustentar meu corpo inteiro naquela posição.
Quando tudo parecia possível, um carro passou tão perto que parecia que ia me levar junto. Aquele vendaval e zunido me levaram ao pânico. O ombro que já estava quase alinhado se reencontrou com o rosto, o ar ficou rarefeito e meu labirinto foi incapaz de manter reta. Eu caí. E eu sei cair, mas sempre dói. As mãos evitaram o pior e os joelhos ganharam uma macha de sangue.
Com vergonha de ter caído de bike aos 26, parecia que a atrofia ganhava espaço de novo. Dizer sim parecia errado e fui empurrando a bike entre carros. Estava perto das 18h e íamos perder o por-do-sol. Ao chegar na praia lavei o sangue na água do mar, pedindo licença e desculpa por usá-la daquele jeito.
Mas segui dizendo sim para várias coisas: para a maconha, para o gin de pepino, para o desespero, para o nada, para a comida, para os corpos que se tocavam por carência, para o beijo não dado. E até para a bike de novo.
Mesmo de joelho doendo me vi de novo em duas rodas, ia respirando sentindo um ar úmido que me fazer transpirar de um jeito bom. Sentia o cheiro que exalava entre os seios, era o suor do movimento e do sol da manhã. Mentalmente conversava com os carros que passavam ao meu lado, pedindo encarecidamente que fossem devagar e até que foram. Os acelerados não me assustaram tanto. Ia respirando profundamente lembrando que já tive coragem, que todo corpo que atrofia pode fortalecer a musculatura.
Minhas companhias seguiam tranquilas lá na frente, felizes e suaves em duas rodas. Eu parei tensa para comprar tinta, tensa para comprar cachaça, tensa para abrir o portão. Meus pés arrastavam no chão como se fossem freios e eu tinha medo do asfalto arrancar o tampo do dedão. Mas, já bastava o joelho, deu tudo certo.
Dias depois olho para minhas pernas marcadas e acho até bonito. As marcas vão sumir, mas fica crônica saudosista da queda e das picadas — essas eram dispensáveis, confesso — fica um corpo que ganhou músculos novos, os dedos destravaram tanto que até pegaram em pincéis. As toxinas liberaram as tensões e a queda, tão boba e fútil, me lembrou que eu sei cair.